O terror nosso de cada dia


Como em todo texto que escrevo, costumo introduzir minha narrativa por fatos e ideias que precedem aquilo que quero destacar numa espécie de dar voltas até chegar ao alvo. Desta vez faço diferente, vou logo ao assunto: semana santa e as dramatizações da paixão de Cristo. 

Elas ocorrem nas praças dos bairros, igrejas, teatros, ruas; são encenadas por crianças, jovens, adultos, idosos, fantoches, atores profissionais e amadores; podem durar de meia hora a quatro horas e meia... Enfim, tem "paixão" pra tudo quanto for gosto. Quase todas elas me aborrecem, me entediam, me dão náuseas. Calma! Aqui não faço nenhuma crítica à religião de alguns e às crenças de muitos. É que depois de ver a alguns anos atrás a cinematográfica "A Paixão de Cristo" (The Passion of the Christ) do polêmico Gibson, tudo o mais se tornou "sem sal", entediante, para mim. Sangue a lá guache, chicote de pano e coisas do tipo não têm mais nenhum efeito mobilizador sobre o meu senso piedoso. A dose da "droga" hollywoodiana experimentada no filme de 2004 foi tão intensa que devo ter desenvolvido tolerância à substância. Resta-me agora só tentar resguardar à minha imaginação aquilo que os espetáculos já não dão conta de criar.

Esse tipo de tolerância parece ser o mesmo que afeta os homens de Deus dos dias atuais. Conto um caso para encerrar. Na missa do lava-pés os clérigos católicos repetem o gesto do mestre. Como aqui no Brasil os quarenta dias que antecedem a semana santa recebem uma tonalidade de cunho social, por conta da Campanha da Fraternidade, esse ano os escolhidos para terem seus pés lavados foram pessoas ligadas à saúde pública, já que a campanha discutiu as problemáticas ligadas a essa área tão sofrida do nosso país. 

Para minha surpresa, neste ano, os padres da igreja que frequento se inclinaram para lavar os pés de diversos "doutores" da nossa cidade. Digo surpresa porque imaginei que quem merecia ter seus pés lavados eram os usuários (pacientes?) dos serviços de saúde, aqueles que acordam antes das cinco da manhã para conseguir uma consulta num posto de saúde que quase cai sobre a cabeça de todos; aqueles que superlotam nossos hospitais nos corredores sobre duras macas; aquele que morrem esperando transplante numa fila que não tem fim...

Acho que a tolerância dos filme de Hollywood há muito tempo tomou a cena nos palcos das nossas cidades (interiores), e ver a cada ano a tentativa de reinvenção da morte do inocente já não assusta mais. Os próprios filmes de terror já não assustam - usando palavras que ouvi hoje de uma grávida - porque o terror já se tornou parte do nosso cotidiano.

Por Neto Alves

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